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A naturalidade como estilo literário

Para inaugurar o lançamento do meu website, impunha-se falar um pouco sobre mim, as minhas causas, as minhas histórias e outros temas, pelos quais nutro uma profunda afeição; por isso, neste texto irei escrever-vos sobre tudo isto relatando-vos como um dia no hospital pode ser um retrato social de classes.

Um texto honesto, como se pretende, pressupõe na base uma naturalidade de gestos, vivências e palavras. “As histórias contadas de forma honesta aproximam-nos das pessoas ”, diria eu como mote para este artigo.

Sou humana, feita de carne e osso, e como todos sou também uma das muitas peças nesta engrenagem do mundo que nunca para de se movimentar. Tenho consciência (e a sorte) de que este website permite libertar a minha voz do silêncio e do anonimato. Por isso, há que usar esta ferramenta com sabedoria para contar histórias que poderiam continuar desconhecidas de todos nós. 

Dentro de um hospital público, em tempos de pandemia

Escrevo-vos do hospital, porque desde manhã que sinto uma forte dor no peito. Em alguns momentos, pensei que ia partir hoje para o Criador. Talvez isso me faça pensar, que não se podem desperdiçar todos os minutos desta vida; de forma repentina, sem termos ainda aprendido nada sobre nós e esta existência, deixamos pura e simplesmente de existir. E fica tanta coisa por dizer!

Uma senhora de idade estava deitada numa maca há muito tempo, quando a chamaram de um dos gabinetes médicos. O nome dela era Maria dos Remédios. Questiono-me acerca do significado do nome dela, num local destes.

Um senhor, sentado à minha frente, lia um livro sobre a história marítima e colonial. Esforcei-me seriamente para conseguir ler o título à distância, devido à minha miopia. Era o único que tinha um livro entre as mãos, e quando abandonei a minha cadeira para colocar uma questão ao segurança, ele foi logo ocupar o meu lugar. Curioso, não é verdade? Que a cadeira que ocupara durante mais de duas horas estivesse agora no “usufruto” do único leitor assíduo daquela sala das urgências do hospital. Um jogo de cadeiras, divertido de se assistir? (Curioso porque também sou leitora assídua e escritora deste livro.)

Com o decorrer das horas, e após uma revolução levada a cabo por uma senhora que estava há espera há mais de seis horas para ser atendida, percebi finalmente – ou melhor, comprovei (porque tinha dificuldade em aceitar este facto) -, que as senhas menos urgentes não estavam a ser chamadas para os gabinetes médicos.

Em tempos de pandemia, apenas os casos extremamente graves e os doentes com Covid-19 têm espaço num hospital público. Assim sendo, com esta estratégia de alocação de recursos, obrigando a que todos aqueles que não estejam à beira da morte ou por lá perto, encontrem refúgio num hospital privado, desisti da minha tentativa de ser ali atendida.

As pessoas não têm voz

Reclamei deste caso junto de uma senhora que neste dia estava na receção. Alertei-a para as longas horas de espera, para todos aqueles que, à míngua de rendimentos – com uma doença nem muito grave, nem muito leve – se encontravam num território de ninguém, sem vislumbre de assistência médica. Acrescentei que nem todas as pessoas ali sentadas há várias horas podiam recorrer aos serviços de um privado. 

Tanto assim é que a senhora que liderou a “revolta” na sala de espera, nem dinheiro tinha para comprar o passe de regresso a casa. Teria que fazer o percurso a pé. Tudo isto me parece sintomático da profunda assimetria que existe entre as classes sociais e aquilo que oferecemos a uns e a outros. E se, para quem que vive no limiar da pobreza, o hospital público é, de facto, o único sítio que encontra para se tratar, também para a classe média esta é uma escolha difícil: é preciso optar entre o essencial e outras necessidades escusadas. Como as próprias palavras revelam, às vezes nem se trata de uma escolha.

É ainda mais preocupante e constrangedor perceber que a única resposta que a senhora da receção tem para nos oferecer é: “Ninguém me ouve. Eu não tenho voz”.

Com isto, termino este artigo dizendo que apesar desta pandemia temos de encontrar espaço e tempo para tudo o resto. Porque o difícil é conciliar prioridades, não nos podemos dar ao luxo de tomar decisões de Zero ou Um.